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sexta-feira, 30 de março de 2012

Retrato do artista quando jovem (James Joyce)



"As vezes acometia-o uma febre que o levava a errar sozinho, à noite, ao longo da avenida silenciosa. A paz dos jardins e as benevolentes luzes nas janelas derramavam terna influência dentro do seu coração sem sossego"

"Não queria brincar. O que queria era encontrar no mundo real a imagem sem substância que a sua alma tão constantemente baralhava. Não sabia onde a descobriria, nem como; mas um pressentimento o advertia sempre que essa imagem, sem nenhum ato aparente seu, lhe viria ao encontro. Haviam de se encontrar sem alvoroço, como já conhecessem um ao outro e tivessem marcado uma entrevista talvez num daqueles portões ou noutro lugar mais secreto. Estariam sós, cercados pelas trevas e pelo silêncio; e nesse momento de suprema ternura ele seria transfigurado. Dissolver-se-ia dentro de qualquer coisa impalpável, sob os olhos dela. E depois, então, num momento, se transfiguraria. Prostração, timidez e inexperiência abandoná-lo-iam nesse mágico momento"

"Nós temos a idade que sentimos"

"Com um inesperado movimento ela lhe virou a cabeça e grudou os lábios nos dele. Ele leu o sentido dos seus movimentos em seus olhos escancarados e erguidos. Isso era demais para ele. Fechou os olhos, apertando-se bem de encontro a ela, corpo e espírito, sem consciência de mais nada no mundo senão a sombria pressão dos lábios dela suavemente se entreabrindo. Eles lhe comprimiam o cérebro como lhe comprimiam os lábios, tal como fossem o veículo de uma vaga linguagem. E entre os seus lábios e os dela sentiu uma desconhecida e tímida pressão, mais sombria do que o desmaio do pecado e mais suave do suave do que som e odor"

"- Um dia de nuvens listradas vindas do mar.
A frase, o dia e a cena harmonizavam-se num coro. Palavras. Seriam as suas cores?Consentiu que elas fugissem e esmaecessem, tinta após tinta: o ouro do sol nascente, o vermelho e o verde dos pomares de macieiras, o azul das vagas, a fímbria cinzenta das nuvens algodoadas. Não, não eram as suas cores-era o equilíbrio e a densidade do período em si. seria, pois, que ele amava apenas erguer e o tombar rítmico das palavras mais do que a associação delas em legendas e em cores? Ou seria que, sendo de visão tão fraca como era, e tão tímido de espírito, tirava menos prazer do reflexo do mundo sensível inflamando-se através do prisma da linguagem multicolorida e ricamente ajaezada, do que da contemplação de um mundo interior de emoções pessoais espelhando-se perfeitamente num lúcido período de prosa farta?"

"A imagem dela entrara na sua alma sempre, e palavra alguma tinha quebrado o silêncio sagrado do seu arroubo. Os olhos dela o tinham chamado: e a sua alma saltara a tal apelo. Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida para além da vida! Um anjo selvagem lhe tinha aparecido, o anjo da mocidade e da beleza mortal, um mensageiro das cortes esplêndidas da vida, para escancarar diante dele, num instante de deslumbramento, os portões de todos os caminhos do erro e da glória. Seguir, seguir, sempre para diante, para diante"!

"Fechou os olhos no largor do sono. As pálpebras tremiam-lhe como se estivessem sentido o vasto movimento cíclico da terra e  dos seus guardiães, tremiam como se sentissem a estranha luz de algum mundo novo. A sua alma desfalecida dentro de um mundo novo, fantástico, ofuscante, incerto como um mundo submerso atravessado por formas e seres nevoentos. Um mundo, um clarão, ou uma flor? tremeluzindo e tremendo, tremendo e desdobrando-se, uma luz a fulgurar ou flor a se abrir, tudo aquilo se dilatava numa interminável sucessão de si mesmo, fulgurando ora escarlate, ora se desdobrando e desmaiando até o rosa mais pálido, pétala após pétala, ou onda de luz após onda de luz, tudo aquilo enchia o céu todo com fulgores, cada fulgor mais intenso do que o outro.
Caíra a noite quando ele despertou e areia e as ervas áridas do seu leito já não cintilavam mais. ergueu-se, vagarosamente, recordando a transfiguração do seu sono e suspirou ante o próprio júbilo"

-"A alma nasceu primeiro-disse ele vagamente-, naqueles momentos de que te falei. Foi um nascimento vagaroso e sombrio, mais misterioso do que o nascimento do corpo. Quando a alma de um homem nasce neste país, há redes atiradas sobre ela para a arrastarem da luz. Falas-me sobre nacionalidade, língua, religião. Hei de tentar voar através de tais malhas"

-"Olha aqui, Cranly- disse ele. - Tu me perguntas o que eu faria e o que eu não faria. Vou te dizer o que farei e o que não farei. Não servirei aquilo em que não acredito mais, chame-se isso o meu lar, a minha pátria ou a minha igreja: e vou tentar exprimir-me por algum modo de vida ou de arte tão livremente quanto possa, e de modo tão completo quanto possa, empregando para a minha defesa apenas as armas que eu me permito usar: SILÊNCIO, EXÍLIO E SUTILEZA"

"26 de abril. Mamãe está colocando minhas roupas novas (de segunda mão) em ordem. E está rogando agora, diz ela, para que eu possa aprender na minha própria vida, e longe do lar e dos amigos, o que o coração é e o que ele sente. Amém. Assim seja. Sê bem-vinda ó vida! Eu vou ao encontro, pela milionésima vez, da realidade da experiência, a fim de moldar, na forja da minha alma, a consciência ainda não criada da minha raça"

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