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segunda-feira, 9 de julho de 2012

Um copo de Cólera (Raduan Nassar)


"Empurrado pra praia do rigor- meus cascos sabiam investir a sua lógica, mas toda essa agressão discursiva já beirava exaustivamente a monotomia, não era mais o caso de bocejar em cima de um sono maldormido, não era o caso enfadonho de esticar os braços supérfluos, as coisas aqui dentro se fundiam velozmente com a febre, eu já não tinha sequer pedrisco na moela, quanto mais cascalho que era o indicado pra digerir o papo dela, sem esquecer que a reflexão não passava da excreção tolamente enobrecida do drama da existência" (pag.34)


  "Vá pôr a boca lá na tua imprensa, vá lá pregar tuas lições, denunciar a repressão, ensinar o que é justo e o que é injusto, vá lá derramar a tua gota na enxurrada de palavras; desperdice o papel do teu jornal, mas não meta a fuça nas folhas do meu ligustro" (pag.38)  



" É hoje outro o meu universo de problemas; num mundo estapafúrdio- definitivamente fora de foco- cedo ou tarde tudo acaba se reduzindo a um ponto de vista, e voce, que vive paparicando as ciências humanas, nem suspeita que paparica uma piada" (pag. 43)



"Só usa a razão quem nela incorpora suas paixões" (pag.56)



"A culpa melhora o homem, a culpa é um dos motores do  mundo" (pag.60)



"As palavras- impregnadas de valores- cada uma trazia, sim, no seu bojo, um pecado original (assim como atrás de cada gesto sempre se escondia uma paixão" (pag. 61)



domingo, 3 de junho de 2012

O Homem Que Sabe (Viviane Mosé)


"A percepção da morte, a percepção da vida, como um ponto de vista, faz nascer o indivíduo no humano, o que o tornou distinto do conjunto de espécie. O indivíduo nasce da consciência de si. O homem é o ser que, a partir de si, avalia" (pag.21)




"Se tudo nasce e morre, a vida é um intervalo entre uma coisa e outra" (pag.23)


"O homem é um ser que cria valores, e a consciência da morte instaura o primeiro valor:`a vida" (pag.24)


"A existência dos deuses justifica a dos homens que tinham como referencia um universo cada vez mais diferenciado; o heroísmo, a coragem, a beleza, as belas palavras, a crueldade, a grandiosidade dos deuses lhes serviam de modelo" (pag.122)


"O homem moderno representado pelo cientista é aquele que acredita ser capaz de realizar o projeto socrático de curar a ferida da existência, o tempo, o sofrimento, a morte" (pag.125) 


"O homem está órfão de Deus porque acredita na imagem única e causal que faz de si mesmo e reivindica o lugar de princípio de ordenação do mundo. São a certeza na unidade e na causalidade de sua vontade e a segurança na clareza e na consciência de suas avaliações que asseguram ao homem moderno sua capacidade de viver sem Deus" (pag.125)


"É preciso criar cidadãos para o Estado antes de criar o Estado para os cidadãos" (pag.154)


"A vida é sempre o alvo; viver melhor e mais intensamente, mas o sistemas de ensino vivem de passado, e a memória e buscam formar um homem teórico, afastado das questões diárias, acumulando conhecimentos na maior parte das vezes inúteis" (pag.167)


"O valor de um pensamento não está no quanto de conhecimento permite, mas na quantidade da vida que provoca" (pag.169)


"A vida é um verbo que deve ser conjugado no presente" (pag.174)

quarta-feira, 23 de maio de 2012

O Túnel (Ernesto Sabato)


" Às vezes acho que nada tem sentido. Em um planeta minúsculo, que há milhões de anos corre em direção ao nada, nascemos em meio as dores, crescemos, lutamos, adoecemos, sofremos, fazemos sofrer, gritamos, morremos, morrem e outros estão nascendo para voltar acomeçar a comédia inúltil" (pag. 40)
"Não vejo incoveniente em dizer que, algumas vezes, o fato de ter observado uma fisionomia me impedia de comer pelo resto do dia  ou  me impedia de pintar durante uma semana; é incrível até que ponto a cobiça, a inveja, a fatuidade, a grosseria. a avidez e, em geral, todo esse conjunto de atributos que formam, a condiçãon humana podem ser vistos num rosto, num modo de andar, num olhar. Parece-me natural que depois de um encontro assim não se tenha vontade de comer, de pintar, nem mesmo de viver" (pag. 47-48)
                                                                                             
"Quantas vezes essa maldita divisão da minha consciencia foi culpada de atos atrozes! Enquanto uma  parte me leva a tomar uma bela atitude, a outra  denuncia a fraude, a hipocresia e a falsa generosidade; enquanto uma me leva a insultar um ser humano, a outra  se compadece dele e acusa a mim mesmo daquilo que denunciou em outros; enquanto uma me faz enxergar a beleza do mundo, a outra me aponta a fealdade e o ridículo de todo sentimento de felicidade" (pag. 81-82)
"O homem é tão apegado ao que existe que acaba  preferindo suportar sua imperfeição e a dor que causa sua fealdade, a aniquilar a fantasmagoria com um ato de vontade própria" (pag. 86)
"Meu Deus, se não era para desconsolar-se pela natureza humana, ao pensar que entre certos instantes de Brahms e um esgoto existem ocultas e tenebrosas passagens subterrâneas" (pag. 134)
"Em todo caso, havia um só Túnel, escuro e solitário: o meu" (pag.144)

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Um Pai de Cinema (Antonio Skármeta)



"Embora eu quase sempre esteja triste, beber vinho me deixa triste de outra maneira.
É como se uma solidão muito profunda penetrasse em minhas veias"  (pag. 17)


- "Que não seja um globo terrestre. Já me deu um no ano passado.
- E não gostou?
- O que quer que lhe diga?Todos aqueles países ali, e eu afundado nesta lama" (pag. 36)




"Não é que as palavras vagueiem incertas algo; o próprio mundo é incerto, as palavras são exatas" (pag.71)



"todos os homens são um pouco marinheiros. Têm curiosidade por outros lugares" (pag. 75)

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Senhora Dos Afogados (Nelson Rodrigues)



"Jura... Na nossa família todas as esposas são fiéis... A fidelidade deixou de ser um dever- é um hábito. Te será fácil cumprir um hábito de trezentos anos..."
 (pag.26)


"Choram sim! Essa que eu matei- a mãe de teu noivo- ainda hoje há quem a chore e peça por ela... Quem reze em sua intenção... Quem acenda círios... E há quem queira vingar o seu sangue! Eu sou o único, Moema,o único assassino do  mundo! Se ao menos eu conhecesse outro... Se achasse alguém que tivesse matado! Então seríamos dois... Eu teria um companheiro para o medo e para a insônia! Conheces outro assassino, além de mim? Alguém que tenha tirado a vida de alguém? Conheces?"(pag.63)


"Tenho! Tenho medo! Sei que nunca mais dormirei... Sei que vou passar todas as noites em claro; e vou queimar meus olhos em febre... Sei que hei de morrer em claro;mesmo depois da morte terei insônia... Rezo, para que Clarinha não venha, para que não volte (...)
-Que importa a minha insônia?Consegui o que queria, o meu sonho! Sou agora a filha única... Olha em torno..." (pag.65)


"E por que não castigas nas mãos? AS mãos são mais culpadas no amor... Pecam mais...Acariciam... O seio é passivo; a boca apenas se deixa beijar... O ventre apenas se abandona... Mas as mãos, não... São quentes e macias... É rápida... E sensíveis... Correm no corpo..."
(pag.69)



 PAULO:    -"Ela morreu, mas eu sinto no ar o seu ódio... Perdi o amor de minha mãe, e para sempre!"
MOEMA: -"As mortas esquecem..."
(pag.87)


segunda-feira, 7 de maio de 2012

KAOS (Millôr Fernandes)


"A ONU aprovou por unanimidade a cimentação de toda a amazônia". (pag.34)

"A china vai exportar a raça amarela para todo o mundo" (pag.34)

"Os sexólogos não têm dúvida. Todos os homens ficam impotentes depois de assistirem 10 peças de teatro" (pag.37)

"Surdos não aguentam mais o excesso de som no mundo" (pag.37)

"Ele declarou, urbi et orbi, que esse cristo aí, de concreto e ferro, ia resolver todos os nossos males, que o Outro não resolveu. As coisas aparentemente, não aconteceram assim. O Cristo de cimento não se mexeu, não desceu aos pobres. As favelas é que subiram até ele". (pag.51)

PSICANALISTA
"Sou psicanalista, lido com o outro lado das almas. O avesso. O que os ingleses chamam de wrongside. O lado errado (...) Enquanto o senhor lida com o lado direito, right. Direito como oponente a esquerdo, direito como... Direito! O Direito! O lado absoluto da alma. Metafisico. Transcendental. Só se pode pecar desse lado. Do seu lado. A alma que está do lado avesso, que é a natural, de uso diário, do meu ponto de vista profissional não peca- adoece" (pag.52-53)

"O câncer não é uma doença. É uma indústria". (pag.67)

"Ditadores analfabetos decretam analfabetismo em massa" (pag.68)

"Não perca esta viajem. Uma ou duas dezenas de intelectuais de gênio transformaram este pedaço de terra infernal, cheia de pássaros e flores insuportáveis, praias e águam perigosamente limpas, num paraíso de edifícios sem garagem, instalações artística de sacos de lixo nas calçadas e cenas de bang bang emocionantes com roteiro de Tarantino e interpretações humilhantes de Stalone. É isso aí, malandro; enredo, aqui, não falta. A estadia de quatro dias com tudo pago fica por apenas 380 reais. Peitos e nádegas às pampas- vinte reais cada. Sexo oral é como tem que ser, boca livre". (pag.85)

PSICANALISTA
"A cremação não é mais um heresia?

SACERDOTE
Não mais. Agora que os horizontes estão se aproximando e ameaçam nos esmagar a todos. Já reduzimos os sete palmos de terra a uma gaveta de cimento. A imortalidade não cabe neste espaço. A vida eterna virou um sufoco. Só nos resta a cremação, que não ocupa espaço.

PSICANALISTA
As cinzas voam para o além.

SACERDOTE
Libertam nossos corpos deste mundo, ventre fechado e estéril" (pag.90-91)


sexta-feira, 4 de maio de 2012



"Diante das conhecidas imagens eu me perguntava se, em épocas passadas, os homens teriam saudade das épocas passadas, como eu, nesta manhã de estio, tinha- como se os tivesse conhecido- de certos modos de viver que o homem perdera para sempre" (pag.39)


"Se nesses países morria-se por paixões que fossem incompreensíveis, nem por isso a morte era menos morte. Ao pé de ruínas contempladas sem orgulho de vencedor, eu tinha posto o pé, mais de uma vez, sobre os corpos de homens mortos por defender razões que não podiam ser piores que as que aqui se invocavam" (pag.57)

"O passado não é imaginável para quem ignora o guarda-roupa, a decoração e o cenário da história" (pag.109)

"Com a mútua aprendizagem que implica o forjamento de um casal, nasce sua linguagem secreta. Já vão surgindo do deleite aquelas palavras íntimas, proibidas a outros, que serão o idioma de nossas noites. É invenção a duas vozes, que inclui termos de posse, de ação de graça, desistência dos sexos, vocábulos imaginados pela pele, ignorados apelidos-ontem imprevisíveis- que nos daremos agora, quando ninguém puder ouvir-nos. Hoje, pela primeira vez, Rosario,  me chamou por meu nome, repetindo-o muito, como se as sílabas tivessem de voltar a ser modeladas- e meu nome, em sua boca, adquiriu uma sonoridade tão singular, tão inesperada, que me sinto como ensalmado pela palavra que mais conheço, ao ouvi-la tão nova como se acabasse de ser criada" (pag.168)

"Um dia os homens descobrirão um alfabeto nos olhos das calcedônias, nos pardos veludos da falena, e então se saberá com assombro que cada caracol manchado era, desde sempre um poema" (pag.228)


"Uma obra se construiu em meu espírito; é coisa para os meus olhos abertos ou fechados, soa em meus ouvidos, assombrando-me pela lógica de sua ordenação. Uma obra inscrita dentro de mim mesmo, e que poderia fazer sair sem dificuldade, fazendo-a texto, partitura, algo que todos apalpassem, lessem, entendessem" (pag.229)


"Há atos que levantam muros, cipos, marcos, em uma existência. E eu tinha medo do tempo que se iniciara para mim a partir do segundo de que me fizesse Executor" (pag.249)


"Sinto que terei de combater a mais terrível de todas as tiranias: a que costumam exercer os que amam sobre a pessoa que não quer ser amada, auxiliados pela tremenda força de uma ternura e uma humildade que desarmam a violência e calam as palavras de repúdio. Não há pior adversário, numa luta como a que vou deflagar, que aquele que aceita todas as culpas e pede perdão antes que lhe indiquem a porta" (pag.261)


"Mundos novos têm que ser vividos, mais do que explicados. Aqueles que aqui vivem não o fazem por convicção intelectual; acreditam, simplesmente, que a vida suportável é esta e não outra. Preferem este presente ao presente dos fazedores do apocalipse. O que se esforça para compreender  muito, o que sofre as aflições de uma conversão,  o que pode alimentar uma ideia de renúncia ao abraçar os costumes daqueles que forjam seus destinos sobre este pântano original, em luta travada com as montanhas e as árvores, é homem vulnerável porque certas potências do mundo que deixou para trás continuam sobre ele" (pag.296)

sexta-feira, 27 de abril de 2012

O Perfume (Patrick Süskind)



-"Ele está possuído pelo demônio.
Rapidamente Terrier tirou o dedo da cesta.
- Impossível!É absolutamente impossível que um bebê esteja possuído pelo demônio. Um bebê não é gente, mas um projeto de gente, e a sua alma é incompleta. Por isso não interessa ao demônio. Será que ele fala? Tem convulsões? Mexe com as coisas no quarto? Sai um cheiro ruim dele?
-Ele não tem cheiro nenhum-disse a ama" (pag.16)


"Os romanos sabiam das coisas! O odor humano é sempre um odor carnal-portanto, um odor pecaminoso. Então, como pode ter cheiro um bebê que nem sequer em sonhos conhece os pecados da carne?" (pag.22)


"Vencera, pois vivia, e tinha um pouco de liberdade que bastava para continuar vivendo. A época de hibernação havia passado. O carrapato Grenouille fez-se novamente sentir. Farejou o ar da manhã. O desejo de caçar dominou-o. A maior área de odores do mundo estava a seus pés: a cidade de Paris" (pag.40)


"Para Grenouille era certo que, sem a posse desse aroma a sua vida não teria mais sentido. Até o menor detalhe, até a sua última e mais suave ramificação, precisava conhecê-lo; a sua mera e complexa recordação não bastava. Queria gravar no caos da sua negra alma, como que com um sinete, o apoteótico perfuma, pesquisá-lo em toda a exatidão e, daí por diante, só pensar, viver, cheirar segundo a estrutura interna dessa fórmula mágica" (pag.50-51)


"Há um poder de convicção no perfume que é mais forte do que palavras, do que olhar, sentimento e vontade. O poder de convicção do aroma não pode ser descartado, entra dentro de nós como o ar em nossos pulmões, nos toma completamente, não antídoto contra ele" (pag.94)


"Esse mundo como que fundido em chumbo, o qual nada se mexia exceto o vento, e que às vezes caía como uma sombra sobre as matas cinzentas e no qual nada vivia exceto os odores da noite desnuda, era o único mundo que ele permitia que reinasse, pois parecia o mundo da sua alma" (pag.132)


"Sabe-se de homens que procuram a solidão: pertinentes, fracassados, santos ou profetas. Retira-se preferencialmente para desertos, onde vivem de gafanhotos e mel silvestre.
Alguns vivem também em cavernas, claustros ou em ilhas remotas, ou se enfiam-algo mais espetacular- em gaiolas penduradas em varas, no ar. Fazem isso para estar mais perto de Deus. Mortificam-se com a solidão e por meio dela se penitenciam. Agem na crença de levarem uma vida que agrada Deus. Ou ficam esperando durante meses ou anos até que, na solidão, lhes advenha uma mensagem divina que, depois, querem divulgar o mais rápido possível entre os homens.
Nada disso aplicava-se a Grenouille. Não tinha em mente nada parecido com Deus. Não se penitenciava nem esperava qualquer inspiração do alto. Só para a sua exclusiva diversão é que retraíra, só para estar mais perto de si mesmo. Banhava-se em sua própria existência, não se desviando por nada mais, e achava isso maravilhoso. Jazia na gruta de rochedos como o cadáver de si mesmo, mal respirando, o coração mal batendo- e, no entanto, vivia tão intensa e desvairadamente como nenhum libertino jamais viveu no mundo" (pag.137-138)


"Inspirou o ar que subia do seu corpo e cheirou o mau perfume, o veludo e o couro recém-colado dos seus sapatos; cheirou o tecido de seda, o pó, o creme, o fraco aroma do sabonete vindo de Potosi. E subitamente compreendeu que não tinha sido a sopa de pomba nem a ventilação milagrosa que haviam feito dele um ser humano normal, mas tão-somente o par de peças de roupa, o corte do cabelo e um pouco de cosmético" (pag.161)


"Queria ser o Deus onipotente do aroma, como fora em suas fantasias, mas dessa vez no mundo real e sobre pessoas reais. E ele sabia que isso estava em seu poder. Pois as pessoas podiam fechar os olhos diante da grandeza, do assustador, da beleza, e podiam tapar os ouvidos diante da melodia ou de palavas sedutoras. mas não podiam escapar ao aroma. Pois o aroma é irmão da respiração. Com esta, ele penetra nas pessoas, e elas não podem escapar-lhe caso queiram viver. E é bem para dentro delas que vai o aroma, diretamente para o coração, distinguindo lá categoricamente entre atração e menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem dominasse os odores dominaria o coração das pessoas" (pag.172)


"A fragrância das pessoas em si era, para ele, indiferente. Tratava-se de uma fragrância que ele ´podia imitar suficientemente bem com substitutivos. O que ambicionava era a fragrância de certas pessoas: daquelas, extremamente raras, que inspiram amor. Essas eram as suas vítimas" (pag.208)


"Mas o ódio que sentia pelas pessoas permaneceu sem eco. Quanto mais ele as odiava nesse momento, tanto mais elas o adoravam, pois nada percebiam dele senão a sua aura, a sua máscara odorífera, o seu perfume roubado, e este era de fato, divinamente bom (...) Mas isso não deu em nada. Não podia dar em nada. Certamente hoje não. Pois ele estava mascarado com o melhor perfume do mundo, e debaixo dessa máscara ele não tinha rosto nenhum, nada senão a sua total ausência de cheiro" (pag.263)




"Tudo isso ele poderia fazer, bastava querer. Tinha poder para tanto. Segurava-o na mão. Um poder mais forte que o poder do dinheiro, do terror ou da morte: o insuportável poder de fazer as pessoas amarem. Só uma coisa esse poder não podia: fazer com que ele exalasse um cheiro próprio. E ainda que pudesse aparecer diante do mundo, por meio do seu perfume, como um Deus- se ele não podia ter seu próprio cheiro, e por isso, jamais saberia quem ele era-, pouco lhe importava o  mundo, ele próprio, o seu perfume" (pag.276)

domingo, 22 de abril de 2012

As Ondas (Virginia Wolf)


"Mas quando nos sentamos juntos, perto um do outro- disse Bernard-, nossas palavras se fundem um no outro. Estamos emoldurados pela nebrina. Formamos um território inapreensível" (pag.21)

"Agora é pleno verão. Subimos para mudar de roupa, vestimos trajes brancos para jogar tênis- Jinny e eu, Rhoda nos seguindo.Conto cada degrau enquanto subo, conto cada degrau como uma coisa definitivamente ultrapassada. Assim também, a cada noite, arranco do calendário o dia que acaba de findar e o amasso numa bolinha bem apertada. Faço isso para me vingar, enquanto Betty e Clara estão ajoelhadas. Eu não rezo. Vingo-me do dia. Descarrego meu ódio sobre as imagens dele"(pag.44)

"Por isso odeio espelhos que revelam meu verdadeiro rosto. Sozinha, muitas vezes mergulho no nada. Preciso firmar meu pé fortemente, senão caio do limite do mundo para dentro do nada. Preciso bater minha mão contra uma porta rija, para me chamar de regresso a meu corpo"(pag.48)

"Serei pelo resto da minha vida alguém que se agarra à franja das palavras" (pag.52)

"Há um obstáculo no fluxo do meu ser; um rio profundo pressiona um empecilho; empurra; puxa; um nó resiste no centro de mim. Ah, essa dor, essa agonia! Desfaleço, fracasso. Agora, meu corpo descongela; estou aberta, estou incandescente. Agora, o rio derrama, vasta maré fertilizante rompendo eclusa, insinuando-se à força por entre as gretas, imundando livremente a terra. A quem darei tudo o que flui através de mim, de meu corpo cálido, meu corpo poroso?" (pag.60-61)

"Seria uma vida gloriosa, devotar-me à perfeição; seguir a curva da frase para onde quer que ela levasse, para desertos, ao longo de colinas de areia, sem me importar com miragens ou seduções; ser sempre pobre e mal-arrumada: ser ridículo em pleno Piccadily" (pag.90)

"Ideias fragmentam-se mil vezes para cada vez que formarem uma espera inteira. Partem-se; caem sobre mim. Em linhas e cores sobrevivem" (pag.155)

"Algumas pessoas procuram sacerdotes; outras, poesia; eu vou ter com meus amigos, vou procurar o meu próprio coração, procuro entre frases e fragmentos algo intacto- eu, para quem não há suficiente beleza na lua ou árvore; a quem o toque de uma pessoa com outra é tudo, mas que nem  isso consegue agarrar, que sou tão imperfeito, tão fraco, tão indizivelmente solitário" (pag.257)

sexta-feira, 20 de abril de 2012

A Máquina do Tempo (H.G. Wells)


"- E não podemos nos mover no Tempo, não podemos nos afastar do momento presente.
- Meu caro senhor, é justamente aí que se engana. É justamente aí que o mundo inteiro tem se enganado. Estamos o tempo todo nos afastando do momento presente. Nossa existência mental, que é imaterial e não tem dimensões, está percorrendo a dimensão do Tempo a uma velocidade uniforme, do berço ao túmulo. Do mesmo modo como estaríamos viajando para baixo se começássemos nossa existência a cem quilômetros acima da superfície da terra" (pag.21)

"Pensei: que estranho progressos da humanidade, que maravilhosos avanços sobre a nossa civilização rudimentar não se revelariam aos meus olhos quando eu me dispusesse a observar esse mundo difuso que flutuava e desaparecia diante dos meus olhos! (...) Mesmo sob o véu de confusão que me envolvia, a terra parecia muito bela. E então surgiu em minha mente o desejo de parar" (pag.40)

"Os grandes edifícios diante de mim podiam agora ser vistos de maneira clara e distinta, brilhando ainda úmidos da tormenta, e ornamentos de branco pelo granizo ainda não derretido que se acumulava em suas passarelas. Eu me sentia como que nu, naquele mundo estranho. Sentia-me como talvez um pássaro pode sentir em pleno ar, sabendo que o falcão paira sobre ele e em breve dará o seu mergulho. Meu medo cresceu até uma intensidade frenética" (pag43)

"Essas criaturas do futuro eram rigidamente vegetarianas, e durante o tempo em que estive com elas, a despeito de alguns acessos de apetite carnívoro, tive que me adaptar ao seu sistema" (pag.49)

"(...) a terra inteira tinha se tornado um jardim. (...) Tive a impressão de estar encontrando a humanidade na sua fase de lento declínio. aquele pôr do sol me levou a pensar no crepúsculo da própria espécie humana" (pag.54)

"Pensei na delicadeza física daquelas pessoas, na sua falta de inteligência, e nas ruínas que via por todo a parte; isso aumentou a minha crença numa conquista total da Natureza. Porque após a batalha vem a quietude. A humanidade tinha sido forte, enérgica e inteligente, e havia usado essa vitalidade exuberante para alterar as condições do mundo em que vivia. E agora vinha a reação do mundo que tinha sido alterado"  (pag. 56)

"Quando parti na Máquina do Tempo, foi com a noção absurda de que os homens do futuro estariam sem dúvidas muito à nossa frente em todos os aspectos práticos" (pag.85)

"E assim continuei minha viagem, fazendo uma parada de vez em quando, em avanços de até mil anos ou mais, seduzido pelo mistério do destino final da Terra, e vendo, com uma estranha fascinação o sol torna-se maior e menos brilhante a oeste, e a vida na velha Terra extinguir-se aos poucos" (pag.127)

"E tenho ainda comigo , para o meu consolo, duas flores brancas- ressequidas agora, escuras e esfarelando-se- para testemunhar que, mesmo quando a inteligência e aforça tiverem desaparecido, a gratidão e a ternura mútua ainda encontrarão espaço nos corações humanos" (pag.139-140)



quarta-feira, 18 de abril de 2012

As Feras (Roberto Arlt)




Conto: Escritor Fracassado:
"Ninguém imagina o drama oculto sob as linhas do meu rosto, mas eu também já tive vinte anos, e o sorriso de um homem imerso na perspectiva de um triunfo iminente. Sensação de tocar o céu com as mãos, de viver numa altura celeste e perfumada, espiando a preguiçosa marcha dos mortais por uma planície de cinza" (pag.37)  


"Voltei meus olhos para a minha Obra, realizada havia muito tempo, e a proclamei perfeita, impecável. A quem se dignasse a me ouvir eu explicava que somente o respeito à minha criação anterior me impedia de produzir algo novo que não fosse muitas vezes superior a ela. E superar aquilo... era tão difícil superar aquilo..." (pag.43)

"Não podia resignar-me a ser uma anônima partícula silenciosa, que à noite mergulha no sono coletivo, enquanto outros homens trabalham venturosos sua beleza à luz de um infecto candeeiro.
Eu desejava ser uma voz no coração desse silêncio. Uma voz nítida, perfeita. Perfeita não, a mais perfeita" (pag.52)

"Tornei-me crítico literário (...) Despertou em mim a alma do inquisidor.
Saboreava o livro que ia despedaçar, muitos dias antes de sentar-me à escrivaninha.
Lembro que o tomava nas mãos e o apalpava com suavidade feroz, fazia a leitura devagar e aos poucos, com sobressalto de quem comete um crime lento e teme que alguém o esteja espiando; e nada soava melhor aos meus ouvidos que o estalo do meu próprio risinho seco, ao imaginar a habilidade com que iria esmagar aquela fábrica de palavras. Esfregava as mãos com nervosismo enquanto pensava no autor; e eu dizia lá no fundo mais profundo de minhas más intenções: - Voce trabalhou, canalha. quis ser famoso. Certo, agora vai ter o que merece." (pag.53)


"Eu me desiludi dos homens, ficando outra vez completamente só. Tentei, pela enésima vez na vida, trabalhar, criar alguma coisa bela,permanente. Queria estremecer a alma dos seres humanos, fazer, com que sentissem melhores ou piores, mas meu esforço evaporou-se no vazio" (pag.60)


"E assim vão se passando os anos. De minha inépcia emana uma filosofia implacável, serena, destrutiva:
-Para que perder o sono com lutas estéreis, se no fim da estrada temos como único prêmio uma profunda sepultura e um nada infinito" (pag.63)

Conto: As Feras:

"E se me resta tua lembrança é por representar possibilidades de vida que nunca poderei viver. É terrível, mas rubricado em certos declives da existência, não se escolhe; se aceita" (pag.102)

"No fundo dos olhos desses ex-homens dilui-se uma névoa cinzenta. Cada um deles enxerga em si mesmo um mistério inexplicável, um nervo ainda não catalogado, partido no mecanismo da vontade. Isso os torna bonecos de corda frouxa, e essa frouxura se traduz no silêncio que guardamos (...) o silêncio é o vaso comunicante por onde nosso pesadelo de tédio e angústia passa de alma para alma com uma fricção escura. Essa sensação de aniquilamento torvo, com as caretas inconscientes que acompanham a lembrança canalha, põe em nosso rosto uma máscara de feiura cínica e dolorosa" (pag.105)

"Feras enjauladas, permanecemos atrás das barras dos pensamentos resíduos, e é por isso que com tanta dificuldade se desprende o sorriso canalha do semblante encolado numa contração de tédio canino" (pag.108)

"Todos estamos cientes de que num dado momento da vida, por tédio ou por angústia, seremos capazes de cometer um ato infinitamente mais vil do que aquele que não condenamos. Para dizer a verdade, pesa como chumbo em nossas consciências um sentimento implacável, talvez a mesma fera vontade que encrespa as bestas carniceiras em seus covis de bosques e montanhas" (pag.112)

domingo, 15 de abril de 2012

A confissão de Leontina e fragmentos (Lygia Fagundes Telles)


"Entendi muito bem o que ele quis dizer e tive tamanho desgosto que nem sei como pude calar a boca. Acho que não sou mesmo muito esperta mas sei rir e sei chorar. Está visto que não é retardada coisa nenhuma quem sabe rir e chorar na hora certa como eu sei" (pag.17)

"As lágrimas misturavam tanto as letras que eu não sabia se elas estavam no papel ou        nos meus olhos"(pag.24)

"Tudo passa sobre a terra!- estava escrito no final do romance que achei triste. Olhei para a outra Iracema que dormia no meio do tapete. Também voce vai passar? Tu quoque, Iracema?! Não sabia ainda que permaneceria infinita na minha finitude" (pag.45)

"Ninguém sabe, ninguém. Na Sibéria ninguém sabe de nada, inútil tirar do bolso o cartão de deputado, as condecorações, os louros. Para a Sibéria deveriam ser mandados os narcisos em delírio num pequeno estágio de humildade. Os ventos passam, os homens passam e ninguém sabe" (pag.47)

"Eles têm alguma ligação entre si?-perguntou-me A.M. Respondi-lhe que são fragmentos do real e do imaginário aparentemente independentes mas sei que há um sentimento comum costurando uns aos outros no tecido das raízes. Eu sou essa linha" (pag.56)

"Amor disciplinado nunca foi amor, pode ser método, arrumação no sentido de se botar tudo direitinho nos lugares, cálculo, mas amor?! Pois amor não era ilogicidade? Transgressão?
Digo-lhe que a indisciplina está só na aparência, na superfície. Na casca. Porque lá nas profundezas o amor é de uma ordem e de uma harmonia só comparável à abóbada celeste" (pag. 57)

"Se estava ouvindo- e livre, para sempre livre, ah, como demorou para entender que os outros-ah, que demora para se libertar, nascer de novo! Então ouviu a voz do próximo [desta vez, tão longe que ficou um sopro] pedir depressa a tampa, já estava passando da hora de fechar o caixão" (pag.59)

"Se a vida estiver lá fora, nessas vozes que desdenhei? E se o desvio da minha rota foi exatamente esse que escolhi? Mas haverá ainda tempo?" (pag.60)

"A máquina prossegue no seu funcionamento que é uma condensação, apenas aquela rodinha já não faz parte dessa ordem. 'É um desajustado'- diz o médico, o amigo íntimo, o primo, a mulher, a amante, o chefe. Há que readaptá-lo depressa à engrenagem familiar e social, apertar esses parafusos docemente frouxos. Se o desajustado é um adolescente, mais fácil reconduzi-lo com a ajuda de psicólogos, analistas, padres, orientadores, educadores- mas por que ele ainda não está nos eixos? Por que tem que haver certas peças resistindo assim inconformadas? Não interessa curá-lo mas neutralizá-lo, taque-taque" (...)
"Inexperiência ou cansaço? Cavalos e homens acabam por voltar à engrenagem. Muitos esquecem mas alguns ainda se lembram e o olhar toma aquela expressão que ninguém entende, ânsia de liberdade. De paixão. Em fragmentos de tempo voltam a ser inabordáveis mas a máquina vigilante descobre os rebeldes e aciona o alarme, mais poderoso  o apelo, taque-taque TAQUE-TAQUE! Inútil. ei-los de novo desembestados: Laçá-los é o mesmo que laçar um sonho" (pag.70)

     

segunda-feira, 9 de abril de 2012

"O Casamento do Céu e do Inferno & outros escritos" (William Blake)


"A eternidade vive enamorada dos frutos do tempo" (pag.19)

"As masmorras são erguidas com as pedras da Leis; bordéis, com os tijolos da Religião" (pag.21)

"A raposa culpa a armadilha, jamais a si mesma" 
(pag 21)

"A ave, um ninho; a aranha, uma teia; o homem, a amizade" (pag.22)

"O que hoje é evidência foi outrora imaginação" (pag.22)

"Fazer uma pequena flor é um trabalho de eras" 
(pag. 24)

"Quem não irradia luz jamais será uma estrela" 
(pag. 25)

"A verdade jamais pode ser proferida de modo que seja compreendida e não acreditada" (pag.26)


"As nações florescem ou entram em declínios conforme suas poesias, pinturas e músicas" (pag.82)

"Num grão de areia ver um mundo
  Na flor silvestre a celeste amplidão
  Segura o infinito em sua mão
  E a eternidade num segundo"
(pag.85)


domingo, 8 de abril de 2012

"Olhai os Lírios do Campo" (Érico Veríssimo)


"Mas da própria paz dos campos e da ideia mesma de Deus lhe vem de repente uma doida e alvoroçada esperança, que lhe toma conta do ser. É possível que Olívia se salve. Seria cruel demais se ela morresse assim. Acontecem milagres- ele se lembra de casos..."
(pag. 21)


"A ideia do pecado, então, começou a perturbar Eugênio. Estudava as lições e portava-se bem na aula porque temia os castigos da professora. Não fumava, não dizia nomes feios nem 'fazia bandalheiras' porque tinha medo dos castigos da mãe. Fugia dos maus pensamentos e não fazia má-criações nem às escondidas, porque Deus estava em todos os lugares e enxergava tudo" (pag.28)

"Chegara finalmente o dia tão ambicionado. Estava formado, era agora o "doutor" Eugênio Fontes. atingira por fim o alto da montanha. Mas o que via? Uma paisagem nebulosa e incerta. Que sentia? De mistura com a sensação de vitória, uma ânsia indefinível, uma doce melancolia. Quisera esquecer as preocupações sérias e festejar o acontecimento como os outros faziam, abrir todas as comportas interiores e deixar que sua alegria jorrasse livre. Alegria? Tinha medo de fazer uma análise íntima, de olhar para dentro de si mesmo, pois seria cruel descobrir que a represa estava seca ou que continha apenas mágoas, incertezas, gritos de espanto e dúvida, velhos recalques" (pag.65)

"De que vale o sucesso? O que ele quer agora é uma alma, um espírito claro para compreender e aceitar a vida e os homens. A cegueira já passou. As mãos frescas de Olívia pousaram-lhe nos olhos, os sonhos perversos se dissiparam" (pag.133)

"- Mandem tocar de novo as máquinas- disse o gerente.- Não podemos ficar parados. Tempo é ouro.
Ouro... Por que era que os homens não se esqueciam nunca do ouro? Ouro lhe lembrava outra palavra: sangue. Tempo também era sangue. Ouro se fazia com sangue" (pag.139)

"No pavilhão n.3 a máquina assassina continuava a marchar como se nada tivesse acontecido. Era de ferro-refletiu ele-, mas sabia ter uma crueldade de homem" (pag.140)

"De que serve construir arranha-céus se não há mais almas humanas para morar neles?" (pag.152)

" É impossível-pensa ele- que tudo acabe na morte. Seria demasiadamente cruel que Deus nos desse uma capacidade de criar e sentir a beleza e nos destinasse ao mesmo tempo ao desaparecimento total e, pior que isso, ao apodrecimento irremediável" (pag.155)

-"Antes de Mussolini e de Stálin já existiam as estrelas e depois que eles tiverem passado elas ainda continuarão a brilhar"(pag.166)

"A vida começa todos os dias" (pag.179)

"A vida tem de tudo. É um mercadinho bem sortido" (pag.258)

sexta-feira, 30 de março de 2012

Retrato do artista quando jovem (James Joyce)



"As vezes acometia-o uma febre que o levava a errar sozinho, à noite, ao longo da avenida silenciosa. A paz dos jardins e as benevolentes luzes nas janelas derramavam terna influência dentro do seu coração sem sossego"

"Não queria brincar. O que queria era encontrar no mundo real a imagem sem substância que a sua alma tão constantemente baralhava. Não sabia onde a descobriria, nem como; mas um pressentimento o advertia sempre que essa imagem, sem nenhum ato aparente seu, lhe viria ao encontro. Haviam de se encontrar sem alvoroço, como já conhecessem um ao outro e tivessem marcado uma entrevista talvez num daqueles portões ou noutro lugar mais secreto. Estariam sós, cercados pelas trevas e pelo silêncio; e nesse momento de suprema ternura ele seria transfigurado. Dissolver-se-ia dentro de qualquer coisa impalpável, sob os olhos dela. E depois, então, num momento, se transfiguraria. Prostração, timidez e inexperiência abandoná-lo-iam nesse mágico momento"

"Nós temos a idade que sentimos"

"Com um inesperado movimento ela lhe virou a cabeça e grudou os lábios nos dele. Ele leu o sentido dos seus movimentos em seus olhos escancarados e erguidos. Isso era demais para ele. Fechou os olhos, apertando-se bem de encontro a ela, corpo e espírito, sem consciência de mais nada no mundo senão a sombria pressão dos lábios dela suavemente se entreabrindo. Eles lhe comprimiam o cérebro como lhe comprimiam os lábios, tal como fossem o veículo de uma vaga linguagem. E entre os seus lábios e os dela sentiu uma desconhecida e tímida pressão, mais sombria do que o desmaio do pecado e mais suave do suave do que som e odor"

"- Um dia de nuvens listradas vindas do mar.
A frase, o dia e a cena harmonizavam-se num coro. Palavras. Seriam as suas cores?Consentiu que elas fugissem e esmaecessem, tinta após tinta: o ouro do sol nascente, o vermelho e o verde dos pomares de macieiras, o azul das vagas, a fímbria cinzenta das nuvens algodoadas. Não, não eram as suas cores-era o equilíbrio e a densidade do período em si. seria, pois, que ele amava apenas erguer e o tombar rítmico das palavras mais do que a associação delas em legendas e em cores? Ou seria que, sendo de visão tão fraca como era, e tão tímido de espírito, tirava menos prazer do reflexo do mundo sensível inflamando-se através do prisma da linguagem multicolorida e ricamente ajaezada, do que da contemplação de um mundo interior de emoções pessoais espelhando-se perfeitamente num lúcido período de prosa farta?"

"A imagem dela entrara na sua alma sempre, e palavra alguma tinha quebrado o silêncio sagrado do seu arroubo. Os olhos dela o tinham chamado: e a sua alma saltara a tal apelo. Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida para além da vida! Um anjo selvagem lhe tinha aparecido, o anjo da mocidade e da beleza mortal, um mensageiro das cortes esplêndidas da vida, para escancarar diante dele, num instante de deslumbramento, os portões de todos os caminhos do erro e da glória. Seguir, seguir, sempre para diante, para diante"!

"Fechou os olhos no largor do sono. As pálpebras tremiam-lhe como se estivessem sentido o vasto movimento cíclico da terra e  dos seus guardiães, tremiam como se sentissem a estranha luz de algum mundo novo. A sua alma desfalecida dentro de um mundo novo, fantástico, ofuscante, incerto como um mundo submerso atravessado por formas e seres nevoentos. Um mundo, um clarão, ou uma flor? tremeluzindo e tremendo, tremendo e desdobrando-se, uma luz a fulgurar ou flor a se abrir, tudo aquilo se dilatava numa interminável sucessão de si mesmo, fulgurando ora escarlate, ora se desdobrando e desmaiando até o rosa mais pálido, pétala após pétala, ou onda de luz após onda de luz, tudo aquilo enchia o céu todo com fulgores, cada fulgor mais intenso do que o outro.
Caíra a noite quando ele despertou e areia e as ervas áridas do seu leito já não cintilavam mais. ergueu-se, vagarosamente, recordando a transfiguração do seu sono e suspirou ante o próprio júbilo"

-"A alma nasceu primeiro-disse ele vagamente-, naqueles momentos de que te falei. Foi um nascimento vagaroso e sombrio, mais misterioso do que o nascimento do corpo. Quando a alma de um homem nasce neste país, há redes atiradas sobre ela para a arrastarem da luz. Falas-me sobre nacionalidade, língua, religião. Hei de tentar voar através de tais malhas"

-"Olha aqui, Cranly- disse ele. - Tu me perguntas o que eu faria e o que eu não faria. Vou te dizer o que farei e o que não farei. Não servirei aquilo em que não acredito mais, chame-se isso o meu lar, a minha pátria ou a minha igreja: e vou tentar exprimir-me por algum modo de vida ou de arte tão livremente quanto possa, e de modo tão completo quanto possa, empregando para a minha defesa apenas as armas que eu me permito usar: SILÊNCIO, EXÍLIO E SUTILEZA"

"26 de abril. Mamãe está colocando minhas roupas novas (de segunda mão) em ordem. E está rogando agora, diz ela, para que eu possa aprender na minha própria vida, e longe do lar e dos amigos, o que o coração é e o que ele sente. Amém. Assim seja. Sê bem-vinda ó vida! Eu vou ao encontro, pela milionésima vez, da realidade da experiência, a fim de moldar, na forja da minha alma, a consciência ainda não criada da minha raça"